segunda-feira, 4 de julho de 2011

Camilo Castelo Branco andou fugido por Fafe há século e meio

O notável romancista Camilo Castelo Branco, consagrado autor de Amor de Perdição, está ligado a Fafe, por diversos laços. Desde logo, através do seu íntimo amigo e confidente José Cardoso Vieira de Castro, proprietário da Quinta do Ermo, em Paços, a quem devotou uma estima imensa e de quem foi confidente insuspeito, apesar da diferença de idades entre os dois (13 anos). Camilo nasceu em 1825 e José Cardoso em 1838.
Como homenagem a Fafe, o “Torturado de Ceide” escreveu o romance Mistérios de Fafe (1868), bem como as duas peças de teatro O Morgado de Fafe em Lisboa (1861) e O Morgado de Fafe Amoroso (1865). O nosso concelho ficou assim perpetuado na extensa bibliografia de um dos maiores vultos da literatura portuguesa contemporânea, ainda hoje estudado e justamente valorizado, pela sua indesmentível singularidade.
Mas Camilo não fala apenas de Fafe, na sua obra, homenageando a terra do seu grato amigo Vieira de Castro. Ele mesmo, em pessoa, esteve em Fafe, em circunstâncias dramáticas, é certo: fugindo à justiça. Estávamos em 1860. O romancista tomou-se de ardentes amores por Ana Plácido, esposa do abastado comerciante portuense Manuel Pinheiro Alves. Na altura, o adultério era crime punido com a pena de degredo temporário, quer para o réu, quer para o co-réu adúltero.
José Cardoso Vieira de Castro, aqui na companhia da jovem mulher Claudina Guimarães, que ele mais tarde assassinaria
Denunciado por Pinheiro Alves, Camilo viu-se obrigado a fugir aos aguazis que o queriam aprisionar. Primeiro, escondeu-se na Samardã, em casa da irmã; depois, em Vila Real. No jogo do gato e do rato com os oficiais da justiça, passou em seguida por Guimarães e pelas Caldas das Taipas, de onde rumou para Fafe, numa altura em que estaria iminente a sua detenção. Aqui esteve um mês escondido, entre Junho e Julho de 1860, na Casa do Ermo, na companhia de José Cardoso, numa altura em que este foi “riscado perpetuamente” da Universidade de Coimbra, por se ter envolvido em mais uma encrenca, em que era tão afeito. Em 1 de Outubro seguinte, Camilo entregar-se-ia voluntariamente à prisão e seria absolvido um ano depois.
Dessa experiência de perseguição e fuga, Camilo deixou-nos páginas deliciosas, no livro Memórias do Cárcere (1862), obra escrita enquanto se encontrava prisioneiro na cadeia da Relação. Vamos segui-lo durante algumas páginas.
Escreve Camilo sobre a morada de José Cardoso Vieira de Castro:

A quinta do Ermo está situada no ponto mais despoético e triste do mapa-múndi. A casa é magnífica: mas os caminhos que a ela vos conduzem são algares, barrocais, trilho de cabras, vielas tortuosas, e aspérrimos desfiladeiros. Os pinhais e arvoredos, que orlam parte da quinta, são enfezados e desgraciosos. Os largos pontos de vista, assim mesmo monótonos, é preciso ganhá-los com grande fadiga de subida. A vizinhança do Ermo são casinhas de jornaleiros, que vieram ali procurar a sombra do afidalgado edifício. (…)
Casa do Ermo, datada de 1805
O escritor relembra que nessa casa nasceram o desembargador Luís Lopes Vieira de Castro e o Ministro dos Estrangeiros e da Marinha António Manuel Lopes Vieira de Castro. E comenta, sibilino: Ora vão lá inferir do local onde o homem nasce os destinos para que nasce! Daquela natureza tão agra do Ermo, daquelas duas crianças, que por ali se criaram entre matagais, quem daria agouro de saídas tão excelentes?.
Camilo aborda depois a relação dos Vieiras de Castro com o jogo do pau, gabando a sua valentia e as suas façanhas, sobretudo nas festas de Antime. Ouçamo-lo:
                  
                   É de saber que Luís Lopes, António Manuel, e José Vieira (pai e tios de José Cardoso), foram, em anos verdes, três denodados jogadores de pau, e tamanho terror incutiram nas cercanias de Fafe que bastaria a qualquer deles, para vencer a sua, mandar o pau e não ir, como o rei da Suécia fazia às botas. As mais memorandas façanhas dos Vieiras de Castro tinham o seu teatro na celebrada romaria da Senhora de Antime.

José Cardoso é que parece ter degenerado desta tradição de valentes manejadores do pau de marmeleiro. Vejamos o que nos diz Camilo a propósito desta faceta do seu amigo:

O meu amigo Vieira de Castro, no que toca a jogo de pau, é o invés completo de seus tios. José Vieira, quando fala dele, diz: «Isto não presta para nada: não tem mais força que um canário”.
Se vinha a talho eu florear um marmeleiro inofensivo diante do meu amigo, para logo exclamava ele: «Está quieto, olha que me dás!»

Camilo Castelo Branco fala depois no Rio Vizela, que corre a pouca distância do Ermo e da Ponte do Barroco, onde o excelente romancista mas fraco poeta escreveu duas quadras.
Ponte do Barroco, ligando Golães e Fornelos
                   Ao fundo de uma colina, sobre a qual assenta a casa de Vieira de Castro, serpenteia uma ribeira de claras águas, que vão juntar-se ao Ave. As margens penhascosas deste córrego eram o nosso passeio de forçada predilecção, que não tínhamos outro.
Há naquele ribeiro uma catadupa em que a torrente referve, estrondeia, e quebra com grande fragor numa bacia eriçada de rochas. As árvores marginais enredam-se em pavilhão escuro sobre a bacia, deixando pequenas margens de relva sobre escamos de granito em que nos sentávamos, eu, pelo menos, enquanto Vieira de Castro dialogava em estilo de Fafe com a moleira da vizinha azenha. Denomina-se o pitoresco sítio a Ponte do Barroco. Na minha carteira tenho oito linhas lá escritas no dia 15 de Junho de 1860. Diziam assim:

                        Ruge a tormenta espumosa.
                        Mas no mar serena entrou;
                        Tal a vida tormentosa:
                        Chega à campa, e serenou.

                        Triste imagem desta vida.
                        Que me Deus fadou a mim!
                        Diz-me, ó onda enfurecida,
                        Qual teu principio e teu fim?

Camilo informa também das suas idas à então Vila de Fafe, onde se encontrava com os cavalheiros da terra num “botequim” (seria o Bal Estevão, como parece rezar a tradição?):

                   Algumas vezes fui à vila de Fafe, cujos cavalheiros conheci no botequim da terra, estabelecimento indeciso entre o modesto e o sujo. Os cavalheiros alternavam as suas horas de ócio com o dominó e a sueca. Conheci aí o senhor José Maria Peixoto, moço de prestantes dotes, que exercia a administração do concelho, e o senhor Joaquim Ferreira de Melo, antigo e consecutivo deputado às cortes, e sujeito de muitos serviços à liberdade.

Como estamos próximo das Festas de Antime, terminamos com um apontamento recolhido das Memórias do Cárcere:

Romaria em honra de Nª Sª de Antime já vem de há séculos

A Senhora de Antime é de pedra, e pesa com a charola vinte e quatro arrobas. Os mais possantes moços da freguesia pegam ao banzo do andor. Aconteceu, anos há, ser um dos que puseram ombro ao andor mal visto dos outros, e de um principalmente. Ao dobrar de uma esquina o moço odiado sentiu-se vergar sob as vinte e quatro arrobas de pedra, e morreu instantaneamente esmagado. O principal inimigo do morto foi logo conhecido, e varado por uma choupada, que lhe fez espirrar o sangue e a vida à charola da imagem. Tirem disto a limpeza de consciência e religiosidade daqueles sujeitos, que ali vão dar testemunho de seu fervor, com a Senhora de pedra aos ombros!
Nesta romagem é que os Vieiras, em diferentes anos, quando moços, escreveram com um pau a sua crónica imorredoira.
A proposta que aqui deixo é para que os leitores interessados não deixem de ler esta saborosa obra autobiográfica Memórias do Cárcere, desse imortal escritor que foi Camilo Castelo Branco.

1 comentário:

Faustino Monteiro disse...

Obrigado por ter partilhado.