Miguel Sousa Tavares, depois de grandes êxitos como
"Equador" e "Rio das Flores", volta a agitar a literatura
portuguesa e sobretudo os seus seguidores, com o seu novo romance,
"Madrugada Suja", que tive o prazer de ler em Agosto.
No princípio, há uma madrugada suja: uma noite de álcool de
estudantes que acaba num pesadelo que vai perseguir os seus protagonistas
durante anos. Depois, há uma aldeia do interior alentejano que se vai
despovoando aos poucos, até restar apenas um avô (Tomás da Burra) e um neto.
Filipe, o neto, parte para o mundo sem esquecer a sua aldeia e tudo o que lá
aprendeu. As circunstâncias do seu trabalho levam-no a tropeçar num caso de
corrupção política. Ele enreda-se na trama, ao mesmo tempo que esta se confunde
com o seu passado esquecido. Intercaladamente, e através de várias vozes
narrativas, seguimos o destino dessa aldeia e em simultâneo o dos protagonistas
daquela madrugada suja e daquela intriga política. Até que, no final, dois dos
protagonistas da madrugada suja, Filipe e Eva, acabam por se reencontrar, numa
paixão, anos depois.
No fundo, a obra acaba por ser uma história romanceada dos
últimos 40 anos da vida pública portuguesa. Fala sobre os acasos da vida e a
corrupção política, do Alentejo da Reforma Agrária até hoje.
Miguel Sousa Tavares decanta no romance alguns dos seus
ódios de estimação ou dos seus cavalos de batalha: o pato-bravismo, os especuladores imobiliários, a corrupção em algum
poder autárquico.
Uma visão desencantada dos efeitos do Portugal pós-Europa:
“Um Portugal de aldeias mortas, de comerciantes falidos, de
agricultores sentados à berma das estradas construídas com os dinheiros da
Europa, vendo passar os grandes camiões TIR que traziam de Espanha e dessa
Europa as frutas e os legumes criados em estufas maiores do que quaisquer
hortas deles, em direcção aos centros comerciais onde, em breve, eles próprios
aprenderiam o novo e insípido sabor dos melões e das cebolas, dos reinventados
“frangos do campo”, ou dos porcos sem gordura nem pecado, embalados em vácuo. E
onde se resignavam a passear aos domingos, com filhos e noras e netos, tentando
não se perder no meio dessa turba deslizante, entre montras e restaurantes e
néons, num dédalo baptizado com nomes de avenidas e ruas, nomes de países ou
heróis da Pátria”.
"Madrugada Suja" é um livro envolvente. Tem
romance, tem história, tem crítica social e política:
"Todos estavam endividados, mas felizes: o Estado, as
autarquias, os cidadãos. Todos viviam em casa própria, mas que, de facto
pertencia ao banco que lhes emprestara dinheiro a 30 anos e também emprestara
para as férias no Brasil, Cuba, República Dominicana, mais o carro e os
brinquedos electrónicos dos filhos".
Uma obra sobre o Portugal dos nossos dias, com as suas
virtudes e os seus defeitos, as utopias e as desilusões, que importa ler e
reflectir.
Excelente!
350 páginas bem escritas, de leitura acessível e estimulante.
Sem comentários:
Enviar um comentário