Instaurada oficialmente em Lisboa, no dia 5 de Outubro de 1910, pelas 11h00 da manhã, a República Portuguesa demorou alguns dias a ser proclamada pelo país, por razões que têm a ver não apenas com as comunicações que na altura não eram famosas, mas também com a conveniência da sua”celebração” a nível local.
Em Fafe foi proclamada na tarde do dia 9 de Outubro, um domingo (fez ontem 102 anos), com grande entusiasmo popular, como sucedeu por todo o país, de resto e como é unanimemente considerado, dado que a monarquia estava agonizante desde havia anos e nem os monárquicos mais empedernidos, salvo uma ou outra excepção (Paiva Couceiro, por exemplo, como vimos antes), mexeram uma palha para a defender. Nem já valia a pena.
À falta de outras fontes, servimo-nos da descrição do semanário republicano O Desforço para termos uma ideia do que foi a proclamação da República na então Vila de Fafe.
O semanário republicano histórico, na sua edição de 13 de Outubro, relata, vibrantemente, pela pena, com toda a certeza, do velho republicano Artur Pinto Bastos, director do jornal:
Logo que houve a certeza de ter sido proclamada a Republica na cidade do Porto (6 de Outubro), noticia que nós mesmos trouxemos, porque viramos o delirio da acclamação, a nossa Commissão Municipal preparou-se para ir cumprimentar o novo Governador Civil de Braga, e receber as ordens que por intermedio do mesmo funcionario lhe eram transmitidas pelo governo provisorio da Republica Portugueza. Na capital do nosso districto assistiram á acclamação que ali fôra imponentissima, dadas as circunstancias daquela cidade ser reconhecida como o centro do mais intransigente reacionarismo. Vieram tarde e por isso só no domingo se poude fazer aqui a ceremonia da acclamação sem se noticiar para conhecimento de todos, e sem tempo para convites. E tanto assim foi que no proprio domingo ao ir-se juntando bastantes populares no largo da villa ainda se andava procurando as musicas que mais depressa podessem fazer os seus compromissos de festividades religiosas, para percorrerem as ruas do nosso centro. E como tardassem, resolveram os nossos correligionarios dar principio ao acto, eram 3 horas certas da tarde.
Quando a Commissão entrou no edifício dos paços do concelho já uma musica tocava a «Portugueza» e a Republica era acclamada pelos populares. E dirigindo-se ás dependencias da administração foi acto continuo lido pelo secretario da mesma snr. Arthur Teixeira da Silva e Castro o auto da posse, investindo na delegacia do governo provisorio nesta villa o snr. dr. Gervasio Domingues d’ Andrade.
O auto de posse das novas autoridades lido solenemente pelo secretário da administração, Artur Teixeira da Silva e Castro, era do seguinte teor:
Aos 9 d’outubro de 1910, e por ordem do Governo Provisório da Republica Portuguesa, compareceu n’ estes Paços do Concelho, para assumir a gerência do município, o cidadão Snr. José Gabriel Peixoto de Magalhães e Meneses, com a seguinte comissão da sua presidência: Gervásio Domingues de Andrade, Miguel Augusto Alves Ferreira, Bernardino Monteiro, José Augusto Ferraz Costa, Vicente d’Oliveira e Castro, Dr. José Teixeira e Castro Guimarães e Dr. José Summavielle Soares.
Compareceu também o digno vice-presidente da Câmara destituída, Snr. Padre José da Silva e Castro, que conferiu a posse.
O cidadão Snr. José Gabriel Peixoto de Magalhães e Meneses e os restantes membros da Comissão da sua presidência declararam pela sua honra que farão por bem desempenhar as funções em que foram investidos.
Por proposta do presidente foi resolvido que a 1ª sessão se effectuasse na próxima 5ª feira, pela huma hora da tarde, para começar os trabalhos da gerência municipal.
Procedeu-se, seguidamente, á proclamação da Republica da varanda dos Paços do Concelho, e ao arvoramento da bandeira republicana.
Prossegue O Desforço a sua descrição:
A entrega foi feita pelo administrador cessante snr. dr. Arthur V. de Castro, abraçando o novo administrador – e assignando o mesmo auto, que também foi assignado por grande numero de pessoas presentes.
O snr. dr. Gervasio proferiu uma allocução comprometendo-se a executar a lei com amor e justiça mas sem tibiezas, como é proprio das novas instituições, cuja implantação vinha acabar com os processos de corrupção que todos conhecem. E tal era a confiança que tinha na administração actualmente só feita pelo povo que levantava um cordeal viva á Republica Portugueza.
Outros vivas se seguiram muito correspondidos, continuando a assignatura do auto.
Cá fóra, tocavam já duas bandas os acordes enthusiasticos da «Portugueza».
Dificilmente se podia atravessar os corredores e subir as escadas para a sala das sessões da camara municipal, completamente apinhada de populares, sendo necessario abrir uma fileira para que a nossa Commissão Municipal pudesse chegar junto da meza das sessões, onde jà se encontravam os vereadores que o governo provisorio tornara demissionarios em face da constituição democratica do programma republicano.
Antes de fazer a entrega o snr. P.e José da S. Castro apresentou em nome de toda a camara cessante cumprimentos affectuosos à Commissão Municipal Republicana e fazendo justiça ao caracter individual de cada um dos seus membros, disse, era tecer o elogio de todos; que esperava que a tutela central deixasse expandir a corporação popular como achava justo e digno de toda a ordem e de todo o progresso. Pessoalmente e com toda a sinceridade acatava do coração a nova forma de governo.
Enthusiasticamente ovacionado assignou o auto da posse, assignando-a também os vereadores presentes bem como a Commissão Municipal assim constituída:
José Gabriel Peixoto de Magalhães e Menezes, Miguel Augusto Alves Ferreira, José Augusto Ferraz da Costa, Bernardino Monteiro, Vicente d’ Oliveira e Castro, Dr. José Teixeira e Castro Guimarães, dr. José Summavielle Soares.
Depois de assignarem, o snr. dr. Summavielle tomando a palavra agradece as saudações da camara presente feitas pelo snr. P.e José e podia garantir que os interesses do município iam ser salvaguardados de conformidade com as aspirações ali votadas por sua exª, pois isso eram aspirações do partido republicano, de ha muito, e para isso foi também que o admirável povo de Lisboa acabava de dar a vida nas ruas da sua heroica cidade.
Os vivas á Republica, á Patria, á Commissão Municipal Republicana, ao Povo de Lisboa, eram delirantemente correspondidos.
Parecia que nesta occasião a alma popular era differente, como depois duma operação feliz se sente num bem-estar todo o enfermo atormentado por longa doença.
Como a sala não podia conter todos os cidadãos, pois que a maioria estava no largo, o snr. dr. Summavielle pediu licença de fazer a proclamação da Republica das varandas do edificio.
Ao seu apparecimento na varanda, o director d’ «O Desforço» levantou-lhe vivas, assim como ao exercito, á Patria e á Republica. E ao ver aparecer o primeiro-sargento da armada, reformado, o snr. Jeronymo Nunes Pereira, levantou tambem vivas á marinha portugueza, seccundados e correspondidos por toda a multidão.
A proclamação do Dr. José Summavielle Soares numa das varandas dos Paços do Concelho, foi do seguinte teor:
Cidadãos!
Em nome da Commissão que vem de ser investida na administração municipal, cabe-me a honra de proclamar a Republica neste concelho.
E, devo dizer-vos, proclamo-a profundamente comovido, porque vejo enfim realizada a aspiração mais ardente do meu coração de patriota.
Cidadãos:
Para derrubar a ominosa dynastia de Bragança e fazer triumphar a sagrada bandeira da Republica foi preciso verter-se, em combates verdadeiramente épicos, o sangue de muitos portuguezes.
Glorifiquemos esse sangue, abraçando, confiantes, as novas instituições republicanas e empenhando todo o nosso civismo na construcção d’uma Patria nova, dignificada e prospera.
Viva a Republica Portugueza!
Viva a Marinha de Guerra!
Viva o exercito!
Viva o grande, o nobre, o heroico povo de Lisboa!
O semanário republicano de Artur Pinto Bastos continua a sua descrição sobre a proclamação da República em Fafe, em 9 de Outubro:
Custava a restabelecer o silencio. Mas feito elle o illustre candidato do nosso partido fez a proclamação da Republica no theor impresso na nossa primeira pagina.
A multidão rompeu numa salva de palmas e com vivas enthusiasticos á Republica Portugueza, por entre os sons das musicas que continuadamente repetiam o hymno provisorio da nação – «A Portugueza».
A Republica é pois um facto em Fafe.
Depois da sua proclamação, e tendo descido a Commissão Republicana, a multidão, ainda quente de enthusiasmo, acompanhou-a por toda a villa com vivas á Republica, aos vultos principaes do Partido Republicano de Fafe, ao povo de Lisboa, ao povo revolucionario, ao exercito, á marinha, ás damas fafenses quando passava debaixo das janelas onde ellas estavam, á imprensa republicana, ao governo provisório, a João Chagas, a França Borges, á republica brazileira, ás outras republicas, etc., etc.
Na redacção de O Desforço e em casa dos republicanos Paulino da Cunha, José Teixeira Leite, e Bernardino Monteiro, já abandeira nacional havia sido desfraldada desde a sexta-feira anterior (7 de Outubro).
A nova Câmara Municipal (Comissão Municipal Republicana) foi assim constituída pelos republicanos Dr. Gervásio Domingues de Andrade (presidente), Dr. José Summavielle Soares (vice-presidente), José Gabriel Peixoto de Magalhães e Menezes, Miguel Augusto Alves Ferreira, José Augusto Ferraz da Costa, Vicente d’Oliveira Castro e Bernardino Monteiro (vogais).
Afinal, era, mais coisa, menos coisa, o núcleo duro dos republicanos que vinha já dos combates dos tempos da monarquia. Um conjunto de homens que representava um universo interclassista, mas onde predominavam os capitalistas, os proprietários, os comerciantes e os bacharéis em direito.
Sobre cada um deles, em rápidas pinceladas, escreveu O Desforço, na sua edição de 3 de Novembro de 1910:
Infelizmente, o partido republicano neste concelho não avultava em quantidade mercê do abandono adredemente preparado pelo antigo regímen, para que as populações afastadas das capitaes afastadas andassem tambem dos seus direitos e servissem os prazeres dos magnates prediais, em dedicação e carinho, como se esses ladrões tivessem foros de gente.
Pobre mas honrado, diminuto mas escolhido, o partido republicano de Fafe, como de resto o de todo o país, reunia em si o que de melhor havia em todas as classes sociais.
- Dr. José Summavielle Soares – bacharel em direito, socio na firma José Florencio Soares, Succ.res, proprietario da importante e muito conhecida fábrica do Bugio, era tam modesto que nunca quiz salientar-se neste meio, onde a sua lucidissima intelligencia havia necessariamente de impor-se. Os proprios adversários reconheciam isto e lastimavam-se de elle não estar disposto a fazer uma linda figura, e diziam até que elle se tinha perdido inutilizando-se com se fazer republicano. Não, não se inutilizou. O dr. Summavielle era um caracter, e não era republicano por commodismo, viso como agora, dentro da Republica, a sua actividade se está desenvolvendo como não esperavam aquelles que o acusavam de amigo das suas conveniencias.
- Dr. Gervásio Domingues de Andrade – também é bacharel em direito, importante proprietario, e advogado da comarca de Fafe. Quem não lhe conhece a honestidade e a intelligência fora e dentro do exercicio da sua livre profissão? Republicano intransigente é por todos considerado o principe dos advogados no auditorio d’este tribunal fafense, o que, se lhe não quadra como adepto da verdadeira democracia, não deixa contudo de exprimir a rigorosa verdade etimologica, sem ofensa para os seus ilustres collegas.
- Miguel Augusto Alves Ferreira – proprietario e alferes aposentado do exercito portuguez. Organizara-se no país o partido republicano com a força moral dos seus homens, quando essa disciplina arrastava para lá todos os caracteres honestos e bons.
O alferes do Ribeiro, como é conhecido o illustre republicano, enfileirou ao lado dos homens de bem, segui-os com a lealdade propria da sua alma e com o calor da sua crença; logo sentiu o odio das perseguições e teve de se aposentar; demonstrando com isso a sua bondade de homem energico. Se quizesse evitar e soffrer essas perseguições haveria hoje mais homens odiados. E os que o são, chegam bem.
- José Gabriel Peixoto de Magalhães e Menezes – proprietario intelligente cultiva com proveito uma virtude cívica: - a economia domestica.
- Bernardino Monteiro – negociante, da antiga firma Elvira Lobo & Cª. vem prestar o seu concurso metodico às novas instituições na ocasião em que ellas se propõem moralisar a parte administrativa do país até aqui posto a saque pelas quadrilhas da monarquia.
- Vicente d’Oliveira e Castro – negociante, proprietario, que em toda a sua longa carreira commercial provou ser um cidadão util. Entrou para o partido republicano logo que viu o descalabro real dos casmurros do poder no tempo do regimen deposto.
- José Augusto Ferraz Costa – capitalista e sincero democrata, nunca se entendeu com a monarquia. Também ajudou a demolir o passado.
Eis os sete cidadãos que as circunstancias vieram a collocar á frente do município e de quem ha a esperar a mais zelosa administração.
E não precisam de conselho.
A nova Câmara começou a trabalhar e logo em 13 de Outubro, “recebia” pacificamente o poder da câmara monárquica, alterava a toponímia da vila, colocando nomes e valores republicanos onde havia congéneres realistas e distribuía os pelouros pelos diversos membros do Executivo: ao cidadão presidente (Gervásio Domingues de Andrade) cabia a Secretaria e a Polícia Municipal, a José Summavielle Soares incumbiam as Obras e a Higiene, ao vogal Miguel Augusto Alves Ferreira cabia o pelouro das Águas, Cemitério e Jardim, ao Vogal José Gabriel Peixoto de Magalhães e Menezes incumbiam a Instrução e Beneficência, a José Augusto Ferraz Costa os Mercados, Limpeza e Iluminação, ao vogal Vicente d’Oliveira e Castro o Matadouro, Açougues e Aferimentos e, finalmente, ao vogal Bernardino Monteiro estavam cometidas a Fazenda e a Contabilidade.
Quanto às alterações toponímicas decretadas por unanimidade na mesma reunião e propostas pelo Dr. José Summavielle Soares, foram as seguintes:
Praça da República para o Largo D. Carlos I (hoje Praça 25 de Abril);
Avenida 5 de Outubro para a Avenida José Luciano de Castro;
Rua Teófilo Braga para a Rua Príncipe Real;
Rua Cândido dos Reis para a Rua D. Maria Pia (actual rua Major Miguel Ferreira);
Rua Miguel Bombarda para a Rua D. Luís I (actual Rua General Humberto Delgado);
Rua Machado dos Santos para a Rua D. Pedro V (actual rua João XXIII);
Rua Francisco Ferrer para a Travessa D. Pedro V (actual Rua Afonso Costa).
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