quarta-feira, 27 de julho de 2011

O dia da avó Emília

Imagem da net
Lembraram-me hoje que, desde 2003, se comemora a 26 de Julho o Dia dos Avós. Um dia luminoso, belo, de convívio intergeracional, no qual os “pais dos nossos pais” ascendem a soberanos seres, respeitados, experientes, num momento de excepção que contrasta com o abandono e a rejeição com que tratamos tantas vezes os idosos deste país, que são, afinal de contas, os nossos pais e avós.
Na minha infância e juventude, repousa apenas uma avó. Dos quatro progenitores de meus pais, apenas restou, na segunda metade do século XX, a face bondosa, trabalhadora, activa, da avó Emília. Um corpo franzino que conheci durante décadas apenas vestido com uma cor: o negro da viuvez. Diria, uma avó derreada ao peso do luto, durante todos os anos que tive o privilégio de a ter como a mãe de meu pai. Ambos já partiram, desafortunadamente, para as respectivas estrelas.
Lembro a avó Emília, poucas palavras, mexida como um sardão, dedicada às fainas agrícolas lá de casa: a apanha da azeitona, pelo íngreme Inverno; as desfolhadas, no Verão; o catar dos bagos, nas vindimas; a recolha da lenha da poda.
Lembro a avó Emília que não parava, que dividia o seu quotidiano entre a nossa casa, em Serafão, a moradia dos restantes dois filhos, na aldeia e a igreja paroquial, onde diariamente expiava os pecados inexistentes, tão pura e boa de coração era. Fazia inúmeros quilómetros todos os dias, numa silhueta irrequieta que hei-de recordar até à eternidade.
Cresci com a avó Emília ao meu lado, mais a inenarrável e amorosa tia Maria, a cada passo desencontradas e indispostas mutuamente, por mera diferença de estilo, mas sempre abertas a questionar a ausência da outra, como se não pudessem viver as duas sob o mesmo tecto, mas não pudessem, do mesmo passo, viver uma sem a outra. Malhas que a psicologia deverá explicar, se é que tal tem interesse para a vida celestial onde ambas descansam!...
No tempo da minha avó, eu crescia, frequentava a escola primária, tomava banho no rio gelado em Fevereiro, para grande azia da minha mãe (e consequente correctivo sobre os meus ossos…), acompanhava o ciclo das sementeiras, das mondas, das regas e das colheitas. O milho, o centeio, os legumes, a batata, o vinho. Uma sociedade agrícola e pecuária que perdurou até aos anos 80 do século XX, e que rapidamente desapareceu, para desconsolo de tantos de nós.
A minha avó voou, certo dia, mais de oito décadas de estar por cá, atropelada por uma bicicleta quando regressava da missa da manhã (o que significou, para a minha mente da altura: é perigoso ir à missa, ensinamento divino que passei a seguir, fielmente, até aos dias de hoje).
Ainda me recordo do seu perfil lívido, quieto, irrecuperável. Nem parecia a minha avó.
Nunca mais falei do assunto, embora a minha avó apareça vezes sem conta na janela irreprimível aberta no meu coração para todos os que me são queridos até à eternidade.
Lembrei-me hoje que a avó Emília não consegue morrer para mim, passados tantos anos. E ainda bem. É porque continua viva!... Pelo menos na minha alma.

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