1. Pela primeira vez nos últimos anos, o governo e o presidente da República impuseram que as comemorações do 5 de Outubro fugissem da vista do povo e se acantonassem numa sala da Câmara de Lisboa, devidamente liofilizada, controlada, para que nenhuma voz crítica conseguisse lá penetrar e aborrecer os discursos bolorentos de Cavaco. Salvou-se a intervenção de António Costa, para grande azia dos garotos do PSD e do CDS.
Nunca se viu uma coisa destas: o alegado governo e o presumível presidente da República a fugirem dos cidadãos. Eles que ainda há poucos anos andavam aos abraços e aos beijos com os feirantes, os agricultores e os homens da rua, e hoje têm medo de enfrentar quem os elegeu (e os outros que não o fizeram, já sabendo porquê…). Por alguma razão é!
Os governantes têm medo do povo e ausentam-se dele, como criminosos que não querem ser apanhados. É inacreditável o que está a acontecer neste país!...
Como inacreditável é que este 5 de Outubro de 2012 tenha sido, porventura, o último feriado da comemoração da República, pois, como sabemos, a obscena ignorância histórica e a subjugação a torpes princípios economicistas deste governo levaram à sua suspensão. Como se a supressão de quatro feriados – dois civis e dois religiosos – fosse relevante na vida económica do país, que tem os governantes mais incompetentes e néscios de que há memória!...
E ainda, por cima, andam os comediantes que nos governam com uns pins com a bandeira da República na lapela. República que infamemente desvalorizam e cujos valores e princípios desprezam. Grandes farsolas!...
Alegada suspensão, porque temos a firme convicção de que para o ano voltará a haver feriado no 5 de Outubro, já que não haverá esta peste de governo de ignorantes e incapazes e o PS já fez saber que, vencendo as próximas eleições, a República voltará a ser comemorada como merece, com o devido feriado, que é devido às datas simbólicas da memória colectiva.
Para quem respeita a memória, a história e os valores perenes da República, o que não é manifestamente o caso dos ignorantes que infelizmente nos governam.
2. Como sabemos, a República instituiu-se em torno de ideias contrapostas à monarquia vigente desde a instituição da nacionalidade, fazendo prevalecer as da democracia e da soberania popular (o que muito dói ao actual poder). A República estriba o seu sistema nos princípios electivos, e com a autoridade a emanar directamente do povo, através dos sufrágios eleitorais realizados periodicamente. Por isso é que os políticos têm a obrigação de se assumirem “acima de qualquer suspeita”. A política só é uma actividade nobre se tiver como referência absoluta a ética e a lisura dos procedimentos, que inviabilizam qualquer deriva autoritária ou corrupta.
A República acaba também por reforçar alguns direitos humanos fundamentais, como os da liberdade, ao transformar os velhos súbditos em cidadãos, ou da igualdade que, ao negar os privilégios derivados do nascimento, confere aos cidadãos em geral a possibilidade de ascenderem a qualquer magistratura, o direito a eleger os seus representantes nas instituições democráticas (das juntas de freguesia à chefia do Estado) e a serem eleitos, dentro dos requisitos estabelecidos para cada acto eleitoral.
Além da consagração insofismável da soberania popular e da cidadania individual e colectiva, a República canonizou um outro princípio, que tanta polémica gerou e continua a gerar, neste último século: o da separação da Igreja do Estado. É o triunfo do laicismo, se se quiser, no sentido em que nem a Igreja manda no Estado, nem o Estado manda na Igreja. Há respeito mútuo, mas não subserviência de qualquer das partes, muito menos promiscuidade.
Não deixa de ser paradoxal, contudo, que, apesar de extremamente agredido e vilipendiado ao longo do Estado Novo, pelos alegados abusos cometidos nos começos da 1ª República, o sistema de governo republicano nunca seria alterado, nem por Oliveira Salazar, basicamente concordante com os seus princípios fundamentais, apesar de se ter como um “monárquico de coração”.
A luta politica desenvolvida pela oposição democrática ao fascismo, brandiu frequentemente os valores da República como fundamento das suas propostas e das suas práticas. Não esqueçamos que, nessa época, os oposicionistas comemoravam o 31 de Janeiro e o 5 de Outubro, como símbolos de uma ideia que queriam ver reimplantada no país. O 25 de Abril veio, enfim, dar um novo impulso purificador aos ideais republicanos, re-actualizando-os. O 25 de Abril acabou por relegitimar o 5 de Outubro.
Teríamos de chegar a este pântano em 2012 para a República ser posta em causa, por ignaros sem passado nem futuro, e cuja caracterização politica e ideológica denota uma mediocridade que confrange…
3. Hoje, 102 anos passados sobre a proclamação da República, há valores republicanos que se mantêm e reforçam. Por exemplo, o fortalecimento do municipalismo, que foi uma das mais sonhadas utopias saídas do 5 de Outubro. O Portugal dos nossos dias é uma “construção” dos municípios, em áreas fundamentais, desde as infra-estruturas básicas à cultura e ao desporto.
Outro exemplo, é o reforço da participação cívica e política dos cidadãos e, em especial, a emancipação da mulher e consolidação dos seus direitos (no trabalho, na esfera privada, no domínio público). E também a igualdade de oportunidades entre os sexos e no âmbito social. O sentido do progresso e da evolução, aos diferentes níveis.
Igualmente o é a aposta decidida na Educação, como pressuposto para o desenvolvimento económico e para a libertação social. Lembremos que a 1ª República instituiu a instrução obrigatória de 4 anos (que, depois, regrediu para 3 anos, no consulado salazarista, para quem bastava ensinar as crianças a “saber ler, escrever e contar”…) e hoje se investe na elevação das qualificações dos portugueses (embora cada vez menos…).
Princípios republicanos são também o apego ao sistema democrático, o triunfo da cidadania e do civismo, as atitudes de rigor, lisura, integridade e verticalidade nas relações humanas, o respeito pelos direitos sociais e políticos dos portugueses, a tolerância como sistema de vida, enfim, o combate à corrupção, à fraude e a todos os atropelos à dignidade da “coisa pública”.
Por tudo isto, nos parece que a República continua plenamente actual, um século volvido, nos seus pressupostos, nos seus desígnios, na sua prática inovadora.
Por isso, custa a perceber como é que, por razões de imbecilidade governativa e troikista, se ponha em causa a mundividência republicana, que é o nosso regime, para o bem ou para o mal. Não há outro.
Em todos os países se respeita o regime, se consagra a respectiva data de implantação, como momento simbólico de coesão social e política. Em Portugal é esta pouca-vergonha, este desprezo, esta ignorância crassa, este analfabetismo histórico, que esperamos muito sinceramente não dure por muito tempo!...
2 comentários:
Um resumo histórico de 100 anos, um olhar profundo do estado da Nação, super-actual como o sempre faz(e muito bem)o autor, só nos resta a esperança que os ideais da República sejam cumpridos, e que os exemplos que aponta no texto sejam cada vez mais reforçados.
obrigado!
Muito obrigado ao Fernando Fernandes pelo seu comentário amigo e muito simpático.
Um grande abraço do
Artur Coimbra
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